O Papel Da Enfermagem Na Avaliação E No Tratamento De Feridas Crônicas

O Papel da Enfermagem na Avaliação e no Tratamento de Feridas Crônicas.

A prática no cuidado ao paciente portador de ferida crônica é uma especialidade dentro da enfermagem, reconhecida pela Sociedade Brasileira de Enfermagem em Dermatologia (SOBEND) e Associação Brasileira de Estomaterapia (SOBEST).

A resolução do COFEN nº 0501/2015 regulamenta a competência da equipe de enfermagem no cuidado as feridas. De acordo com essa resolução cabe ao enfermeiro capacitado a avaliação e prescrição de coberturas para tratamento das feridas crônicas.

A equipe de enfermagem desempenha um papel importante no tratamento de feridas sendo que 80% dos casos são acompanhados a nível primário ou ambulatorial onde a realização dos curativos é feita pela equipe de enfermagem em um processo dinâmico e gradativo, sendo necessário domínio no conhecimento teórico para um acompanhamento e tratamento eficaz, pois a escolha de um tratamento equivocado pode prolongar ainda mais o tratamento da ferida.

O que é uma ferida?

Uma ferida é representada pela interrupção da continuidade de um tecido corpóreo, em maior ou em menor extensão, causada por qualquer tipo de trauma físico, químico ou mecânico.

Quais são os fatores de risco para o desenvolvimento de uma ferida?

Pacientes com Diabetes Melito(DM) e Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), possuem alto potencial de desenvolver feridas crônicas visto que complicações vasculares neste grupo são muito mais que frequentes podendo ser potencializados por outros fatores como o tabagismo e a obesidade. Esses fatores comprometem a perfusão tecidual, aumentando o risco de desenvolver lesões e dificultando a cicatrização quando as mesmas ocorrem.

Nos casos de pacientes acamados ou em uso de cadeira de rodas o cuidado deve ser redobrado para evitar o surgimento de lesões por pressão que normalmente surgem devido a pressão continua em proeminências ósseas.

E paralelamente a estes problemas o paciente pode apresentar problemas que interferem no processo de cicatrização como idade e o seu estado nutricional que se estiver comprometido dificulta o processo de cicatrização prolongando seu tratamento.

A cicatrização é um processo sistêmico, isso significa que depende do organismo como um todo. Por tanto, o profissional de saúde deve se concentrar na avaliação holística do paciente ou seja em seu estado nutricional, emocional, psicossocial e ambiental evitando focar-se apenas na ferida, cabendo-lhe tirar dúvidas e esclarecer a importância de hábitos de vida saudáveis como higiene e controle rigoroso de doenças de base como HAS e DM.

Quais são as fases do processo de cicatrização?

A pele é composta por três camadas: uma superficial, a epiderme; uma intermediária, a derme; e uma mais profunda a hipoderme, a camada encontram-se unidas entre si. Quando a integridade do tecido cutaneomucoso sofre uma lesão, imediatamente inicia o processo de reparação. Esse processo pode didaticamente ser dividido em três fases:

  • Inflamatória: inicia-se imediatamente no momento em que ocorre a lesão. Nessa fase ocorre formação de trombos, ativação do sistema de coagulação, desbridamento da ferida e defesa contra infecções através das células do sistema imune.
    A função da fase inflamatória é preparar o local afetado para o crescimento de tecido novo. Inicialmente ocorre a agregação plaquetária e formação de trombócitos, que liberam mediadores vasoativos, fatores quimiotáticos e fatores plaquetários, cada um com funções diferentes. Em seguida, inicia-se o processo inflamatório, caracterizado pelo aumento do fluxo sanguíneo e ocorrência dos sinais flogísticos: dor, calor, rubor e edema. A resposta inflamatória é facilitada por mediadores bioquímicos de ação curta como a histamina e serotonina e os mais duradouros como bradicinina e prostaglandinas. Os primeiros componentes do sistema imunológico a chegarem na ferida são os monócitos e os neutrófilos que realizamfagocitose das bactérias e decomposição do tecido necrosado. Posteriormente a chegada dos macrófagos que ativam os fibroblastos e células endoteliais.
  • Fase proliferativa: ocorre a formação de tecido de granulação composto por novos vasos sanguíneos e por brotos endoteliais, fibroblastos, macrófagos e colágeno, este processo ocorre 72 horas após a lesão e prolonga-se até 3 semanas. O colágeno tem papel importante neste processo, é responsável pela consistência e força da cicatriz e formação da matriz celular. Posteriormente ocorre a epitelização por meio dos queratinócitos que são direcionados para as bordas da ferida.
  • Fase de maturação: inicia-se por volta da terceira semana e estende-se até dois anos. Ocorre um aumento da resistência do tecido, o volume da cicatriz diminui gradualmente e a coloração passa aos poucos de vermelho para o branco pálido, característico do tecido cicatricial. O equilíbrio entre a produção e a degradação de fibras de colágeno é essencial. Caso haja um desequilíbrio nesta fase formam-se cicatrizes chamadas queloidianas ou hipertróficas.

Você sabia que existem diferentes tipos de cicatrização?

As feridas podem cicatrizar de diferentes formas, sendo a cicatrização classificada em:

  • Primeira intenção: ocorre em feridas pequenas onde as bordas não são muito afastadas, não apresentam infecção e muito edema, as bordas são unidas por meio de sutura.
  • Segunda intenção: Ocorre grande perda de tecido, maior afastamento das bordas com ou sem infecção, as lesões são mantidas abertas, deixando-as se fecharem por meio de epitelização.
  • Terceira intenção: Ocorre abertura da ferida, também conhecido como “Deiscência” devendo ser tratado a causa, podendo ser indicado a limpeza ou debridamento. É necessário aguardar a formação de tecido de granulação saudável para posterior captação das bordas da lesão.

 

Como devo avaliar uma ferida?

O enfermeiro ao realizar a avaliação da ferida, deve avaliar todo seu aspecto a fim de decidir qual o melhor tratamento a ser seguido.  Alguns elementos devem ser avaliados e registrados para garantir um tratamento adequado, cada um dos itens a seguir devidamente registrados facilitam posteriormente a avaliação do profissional:

    • Área de abrangência e extensão da lesão: define a área onde está localizada a lesão através de medidas de largura e comprimento, devendo ser anotados periodicamente para realização de comparação e evolução da ferida.
    • Aspecto da área adjacente: a área que se estende ao redor da ferida (perilesional) deve ser observada especificando se ela se encontra: integra, lacerada, macerada, com presença de eczema, celulite, edema, corpos estranhos ou sujidades.
    •  Aspecto da lesão: tipo de tecido predominante (granulação\esfacelo\necrose).
    • Características do Exsudato: importante durante a avaliação, observar a presença de exsudato, a quantidade e a qualidade tem ligação direta a suas condições, devendo, portanto, ser evidenciado o tipo de exsudato, coloração o volume, se muito ou pouco, se fluido ou espesso, purulento, hemático, seroso ou serossanguio, além da presença ou não de odor.
    • Dor: Na pele encontramos uma variada rede de terminações nervosas sensitivas, nos permitindo a realizar estímulos mecânicos, térmicos e dolorosos provenientes de meio externo. Deve-se ser levado em consideração todos os aspectos relacionados a dor, a existência ou não, tipo de dor apresentada (pontada, queimação, ardência ou latejante), tempo e intensidade, se cessa com uso de analgésicos e se vem acompanhada de sinais flogísticos.
    • Infecção: a pele representa uma barreira consideravelmente eficaz contra agentes patogênicos, quando ocorre uma lesão essa barreira é rompida facilitando a penetração de agentes patogênicos. Os mais comuns são Staphylococcus e Streptococcus, sabe-se que alguns microrganismos estão se tornando cada vez mais resistentes como Staphylococcus aureus e Streptococcus aureus, podendo causar graves prejuízos a ferida e ao paciente, retardando o processo de cicatrização. A identificação precoce de infecção nas feridas é fundamental para determinar o tratamento com coberturas apropriadas e remover os tecidos desvitalizados. Deve-se identificar sinais clínicos de infecção como a presença de exsudato purulento com odor. É imprescindível avaliar e registrar a presença dos sinais de inflamação: rubor, calor, edema. febre.
    • Evolução: A maioria dos serviços especializados em tratamento de feridas possuem protocolos bem delineados com formulários apropriados com informações do estado geral de saúde do paciente proporcionando evolução a resposta do tratamento proposto e possibilitando o detalhamento do aspecto da ferida. Todos os itens acima descritos devem constar no registro diário da evolução da lesão.

Em modo geral a característica do tecido encontrado na ferida nos mostra a recuperação ou a piora da ferida com potencial de impedir novo crescimento celular dificultando o processo de cicatrização. Alguns tecidos podem ser vitalizados quando vascularizados apresentam-se de cor viva, clara, brilhante e sensível a dor. Muitas feridas podem apresentar tecidos mistos, devendo ser levado em consideração o tecido predominante no leito da lesão.

Quais são os tipos de tecido que posso encontrar em uma ferida?

  • Tecido de Granulação: com coloração rósea ou avermelhada é de extrema importância no processo de cicatrização aparentemente brilhante e úmido é rico em colágeno, localizado na superfície da lesão, indolor, porém sangra ao mínimo toque, sendo assim deve-se ter muito cuidado na realização da limpeza e no curativo. Este tecido não pode ser friccionado, removido, deve ser protegido e mantido em meio úmido para proliferar até que se torne um tecido fibroso.
  • Tecido epitelial ou de epitelização: Aparece na ferida como um novo tecido róseo e brilhante(pele), desenvolve-se a partir das bordas favorecendo o fechamento da ferida. Com o passar do tempo o epitélio torna-se mais espesso e sedimentado.
  • Tecido macerado: caracterizado pela borda esbranquiçada, esta característica ocorre devido ao excesso de umidade na ferida pelo aumento da exsudação. A permanência de coberturas por longos períodos sem substituição também contribui para umidade excessiva, portanto ao perceber que a o curativo está saturado, deve ser realizado a limpeza e troca de cobertura antes do prazo máximo.
  • Esfacelo (necrose de liquefação): é descrito como uma membrana fibrosa, composta pelo conjunto de células mortas acumuladas no exsudato. Pode ter presença de bactérias e leucócitos, com aparência de tecido fibrinoso, que se adere ao leito da ferida. Pode cobrir grandes áreas. É considerado um tecido inviável e deve ser removido.
  • Fibrina: proteína formada no plasma a partir da ação da trombina sobre o fibrinogênio e que é a principal componente dos coágulos sanguíneos.
  • Tecido Necrótico: resultante da morte celular e tecidual e com consequência perda da função orgânica e do metabolismo e de forma irreversível. Tem como característica coloração preta, marrom ou acastanhada.
  • Necrose caseosa ocasionada por infecções tuberculosas como características de um queijo tornando-se friável com coloração que varia do esbranquiçado ao acinzentado.
  • Necrose gangrenosa: pode ser chamada de gangrena. Em alguns casos, se não for revertida com o tratamento, leva amputação do membro por ela acometido. Neste tipo de necrose o tecido sofre alterações por agentes externos como por exemplo, bactéria, o tecido por ser úmido ou seco tornando-se endurecidos e escuros com presença de proliferação de microrganismos na lesão com odor pútrido.
  • Necrose Coagulativa: Este tipo de necrose é o mais comum, ocorre devido a isquemia tecidual muitas vezes por pressão contínua.

Através de um processo chamado autólise o organismo de forma natural realiza a desintegração de células desvitalizadas pela ação leucocitária. Esse processo é conhecido como desbridamento auto lítico.

Porém nas feridas crônicas este mecanismo muitas vezes é insuficiente. Sabemos que um dos obstáculos para o processo de cicatrização é a presença de tecido desvitalizados\ necrótico que se mantidos na ferida cronificam, aumentando o risco de infecção além de dificultar o processo de cicatrização. Nesses casos pode ser necessário desbridamento cirúrgico, instrumental ou enzimático da ferida.

Antes da realização do procedimento a lesão deve ser avaliada de forma geral, pois o desbridamento pode contribuir para o aumento da dor do paciente. Deve- se levar em consideração um esquema terapêutico para controle da dor e a circulação deve ser avaliada pela temperatura, coloração, e das frequências dos pulsos adjacentes. Após uma avaliação criteriosa a escolha do procedimento deve ser feita, entre as seguintes opções:

  • Desbridamento cirúrgico – consiste na remoção completa do tecido necrótico, esta técnica é realizada em centro cirúrgico pelo cirurgião, indicada quando o paciente necessita de uma intervenção mais urgente e está indicada para necroses de coagulação e liquefação.
  • Desbridamento instrumental : a remoção do tecido desvitalizado é removido de forma gradativa e seletiva em diversas sessões, pode ser realizado a beira leito ou em sala de curativo com a utilização de material cortante como bisturi , tesoura, pinças e coberturas hemostáticas, podendo ser combinado com outras técnicas como enzimático e autolítico esta técnica pode ser realizada pelo enfermeiro devidamente capacitado com conhecimento e  formação específica que lhe proporcione, habilidades e atitude ,conforme parecer do Coren nº 013/2009.
  • Desbridamento enzimático: Consiste na aplicação tópica de substâncias enzimáticas e proteolíticas que atuam como desbridantes diretamente em tecidos necróticos, a escolha da enzima deve ser feita após avaliação do tipo de tecido que se quer desbridar. Recomenda-se proteger a pele perilesional para evitar a maceração do tecido.

Dentre as formas de tratamento das feridas, um aliado ao cuidado são as utilizações de coberturas específicas para cada apresentação do leito da lesão. O profissional deve avaliar o aspecto da ferida para escolha da cobertura adequada com objetivo de criar um ambiente adequado para facilitar o processo de cicatrização. Em alguns casos deve ser considerado a possibilidade de utilizar mais do que uma cobertura na ferida.

Existem diversos tipos de coberturas, dentre as mais usadas temos:

  • Ácidos Graxos Essenciais (AGE), registrado pela ANVISA como cosmético está indicado para uso em pele íntegra visando a prevenção de lesões favorecendo a nutrição celular e hidratação da pele formando uma película protetora.
  • Alginato de Cálcio e Sódio: possui alta efetividade microbiana previne contaminação externa, indicada em lesões cavitárias; úlceras venosas; lesões por pressão; queimaduras de 2º grau e áreas doadoras de enxerto e lesões com pouco sangramento. Contraindicada em necroses secas, deve ser trocada sempre que estiver saturado, e sua permanência máxima é de até 7 dias.
  • Bota de Unna: promove a compressão no membro aumentando o retorno venoso e melhora drenagem linfática. Mantém meio úmido para cicatrização sendo indicado em úlceras venosas e edema linfático de membros inferiores, recomendada a pacientes que deambulam. A troca da bota de unna pode ser feita a cada 7 dias e prevê capacitação do profissional para colocação do material.
  • Carvão ativado com Prata – tem ação bactericida absorve exsudato neutralizador de odor e está indicado em feridas de moderado a muito exsudato, superficiais ou profundas, infectadas ou não, com o sem tecido necrótico, deve ser trocada sempre que estiver saturado, e sua permanência máxima é de até 7 dias. Importante ressaltar que esta placa não pode ser cortada, caso a ferida seja menor que o tamanho da placa, as bordas devem ser protegidas.
  • Colagenase – promove desbridamento enzimático suave e não invasivo está indicado para feridas com tecido desvitalizado. Deve ser trocada sempre que estiver saturado ou a cada 24h.
  • Hidrogel: proporciona ambiente úmido evita ressecamento e desbrida áreas de necrose indicado feridas limpas não infectadas com áreas necróticas ou esfacelo . Deve ser trocado em feridas infectadas: no máximo 24 horas e tecidos com necrose: no máximo a cada 72 horas.
  • Malha de Acetato de celulose: evita a aderência do curativo ao leito da ferida. Está indicada feridas como queimaduras (primeiro ou segundo grau), abrasões, enxertos, úlceras venosas, entre outros. Deve ser trocado em média a cada 24 horas.
  • Microfibra – curativo superabsorvente, gel macio e coesivo que se adapta ao leito da ferida mantém ambiente úmido ideal para a cicatrização e controle do excesso de exsudato. Promove o desbridamento autolítico com a remição natural do tecido desvitalizado mantendo o meio úmido. O curativo vai se desprendendo de acordo com a reepitelização, pode permanecer até 14 dias de acordo com o fabricante.
  • Papaína: possui ação bactericida e desbridamento químico, ação anti-inflamatória diminui edema local. Deve ser usado com critério conforme apresentação,2% – tecido de granulação 4% – granulação e secreção purulenta 6% – Necrose de liquefação 8%– necrose de liquefação mais necrose de coagulação 10%- necrose de coagulação. Deve ser trocado duas vezes ao dia ou conforme saturação do curativo.
  • Placa de Hidro coloide: impermeável à água e bactérias e vírus, isola o leito da ferida do meio externo evitando o seu ressecamento e a perda de calor. Mantém ambiente úmido, está indicado em abrasões, lacerações, cortes superficiais, queimaduras, rachaduras de pele, lesão por pressão e úlceras diabéticas, feridas cirúrgicas. É indicada também para  prevenção de lesões de pele.Deve ser trocado a cada 7 dias ou quando houver presença de fluido na ferida.
  • Sulfadiazina de prata: exerce ação bactericida imediata e ação bacteriostática residual pela liberação de pequenas quantidades de prata iônica está indicada em caso de queimaduras; lesões infectadas ou com tecido necrótico. Deve ser trocado no máximo a cada 12 horas ou quando a cobertura secundária estiver saturada, a cada troca toda a pomada deve ser removida.

 

Quais são os aspectos a serem considerados na realização do curativo?

Alguns princípios básicos devem ser seguidos para realização de curativos:

  • Lavagem das mãos antes e depois do procedimento;
  • Comunicar ao paciente o procedimento que será realizado e explicar o tratamento em curso;
  • A limpeza da ferida deve ser feita com soro fisiológico 0,9%;
  • Avaliar se a técnica deve ser estéril ou limpa;
  • Não secar o leito da ferida;
  • Utilizar coberturas que favorecem a cicatrização, mantendo meio úmido ;
  • Preencher cavidades;
  • Proteger as bordas da ferida;
  • Ocluir com material hipoalérgico;
  • Desbridar quando necessário;
  • Utilizar cobertura conforme a apresentação do tecido;
  • Registrar em prontuário o procedimento realizado e a evolução da ferida.